“Fale da sua aldeia e falará do mundo" e outras falácias
Ou “Se nada é universal, nem toda literatura nos pertence.”
Este texto vai parecer belicoso, por expor uma tese, mas não é. Se quiserem debater algum ponto, estou aberto ao papo, mesmo que eu soe muito certo do que estou dizendo aqui. Mil perdões (e agradeço correções) a profissionais do meio literário se certas eras ou tendências que indico ocorreram antes do que minha experiência indica.
Uma lei de “escrita criativa” que se tornou problemática no século XXI é aquela atribuída ao Tolstói “Fale da sua aldeia e falará do mundo” (creio ser esta a tradução mais comum). Concordo com ela em certos sentidos (como o mais óbvio: “a aldeia está no mundo, ela é parte de um objeto que não pode ser retratado pleno, então fale da parte, como símbolo, para falar do todo”), mas a tenho visto usada numa forma extrema, como indica a outra tradução famosa: “Se queres ser universal, fala da tua aldeia”.
Além do problema do “universal”, a frase me parece falsa e perniciosa num contexto em que todo o processo criativo está monetizado.
Comecemos por problematizar a “universalidade”, que é mais simples. A ideia de que certas ideias ou características são universais apanhou bastante no fim do século XX e inicinho do XXI, numa luta contra o elitismo, o eurocentrismo, o imperialismo, a heteronormatividade, o essencialismo (racista, machista etc.). Nesse sentido, acho bom modular bastante o implícito universal do Tolstói.
Ok, isso não implica abandonar a frase completamente. A melhor dica de escrita que uso, se tranquei num trecho, é “escreva uma frase verdadeira, a mais verdadeira que você já escreveu… então escreva outra”, do Hemingway, o que tem uma ligação subterrânea com a ideia do Tolstói. Além disso, é claro que muitos temas tocam a maioria de nós, como amor, traição, tesão, injustiça, exploração. É difícil não reconhecer nossa aldeia no Rio de Janeiro do século XIX, quando Machado esmiúça como o interesse leva à racionalização, que leva à moral de cueca, e como o privilégio reforça, das formas mais perversas, essa racionalização e seu moralismo. Ainda assim, nem todo mundo gosta de Machado. Há até quem desgoste da literatura dele. Do maior escritor do Brasil? O que deu errado?
Bom, eu diria que simplesmente não somos todos iguais. Atribuir esse não-gosto pelo Machado à falta de capacidade de interpretação é um pedantismo que eu não me disponho a abraçar. É óbvio que é difícil formar leitores de Machado hoje em dia, mas existem aos montes e, apesar dessa competência de leitura, podem se interessar pelo autor ou não. Como fã, isso me dói, mas não é o caso de culpar o leitor — o que também, em dois toques, vira moralismo.
Se a pessoa não curte Shakespeare, Dante, Woolf, Lispector, Le Guin ou quem for, o problema pode ser justamente a especificidade da obra. Há “amor” nos livros de toda essa lista, entretanto não é o mesmo amor, nem vivido do mesmo jeito. Para Le Guin falar da aldeia dela, ela escreveu sobre outros planetas, e tocou mais a mim que o Dante falando do pós-vida católico do século XIV, ainda que eu aproveite e admire ambos.
Há quem não precise de debates decoloniais, desconstrutivistas ou feministas para modular o sentido de “Fale da sua aldeia…”, mas me parece que a frase é usada, geralmente, de modo absoluto, com uma universalidade do “eu” autoevidente que seria desbancada por uma leitura atenta dessas teorias críticas. A citação é uma dica ótima, mas é isso, uma dica, que não parece absoluta nem autoevidente quando a gente ensina gerações de alunos a escreverem e a lerem, tentando provocar o gosto pela literatura.
“Fale da sua aldeia e falará do mundo” até parece análogo a “Sou humano, nada do que é humano me é estranho” (Terêncio), mas há uma diferença crucial: Tolstói é o autor falando; Terêncio, para o que nos interessa aqui, é o leitor. Se uma pessoa se imagina universal e busca um contato com autor ou autora, ótimo. Ao pegar um livro, a pessoa pode achar a si mesma na obra, como pode achar o que quiser. Isso não implica que, ao falarmos de nós mesmos, falávamos também dela. É essa pessoa à la Terêncio que vem nos encontrar na nossa obra.
Meu outro problema com essa frase nasce quando ela se insere no mercado da segunda década do século XXI.
O “gosto”, agora, é majoritariamente consumo, e tudo afeta uma compra: o meio literário, a política internacional, o filme vencedor do Oscar, uma janta apimentada antes de navegar por Amazon ou Estante Virtual.
O processo criativo está monetizado a ponto de termos importado até o “agente literário”, por microscópico que seja nosso meio editorial comparado com o dos EUA, onde tudo é money (ideologia, aliás, que a gente costumava criticar por aqui). A primeira vez em que eu conheci um agente em Porto Alegre foi em 2016, e eu francamente achei que o cara estava viajando querendo forçar esse nicho de emprego por estas bandas, mas não parou aí. Para citar apenas alguns pontos: a revisão é paga, a leitura “beta” é paga, o pensar sobre a escrita é pago, reunir-se para debater um livro (grupos de leitura), em muitos casos, tornou-se pago, e o que dizer da explosão de oficinas de escrita criativa? Viver de escrita, impraticável, traduziu-se em viver da comunidade de escritores. Creio que, há 10 ou 15 anos, essa monetização pareceria impossível.1
Nisso, editoras se formaram para (ou se restringiram a) “diagramar e imprimir”, quem sabe fazer a capa. Todo o resto é com o bolso de quem escreveu o texto, reforçando em parte esse mercado de apoio. As redes sociais funcionam como forno alquímico em que tudo vira “conteúdo”. Postar seus sentimentos sobre a escrita, o envio de um original a uma editora, a shippagem de personagens antes ou depois de uma obra ser lançada, cada movimento joga para que mais gente compre ou deixe de comprar o livro. Claro que a maioria de nós não faz tudo desse pacote, mas ao menos alguma parte, sim. Como indiquei no prefaciozinho, não estou criticando, mas acho necessário explicitar o universo atual da escrita literária.
Não me parece polêmico assumir que a citação de Tolstói, repetida em cursos e vídeos nas redes sociais, implique, particularmente para quem está começando, “tal é o caminho para escrever algo que outras pessoas queiram ler, que atraia as editoras, i. e., que venda”. No fundo da dica ressoa a “promessa da nomeada”, como dizia o Machado, e a nomeada, mais que nunca, implica dinheiro (nem que seja uns trocos).
Umas pessoas citam a frase sem pensarem nesse subentendido (ou precisam denegar a relação entre arte e dinheiro, como diriam Bourdieu e seus derivados), contudo, neste texto, não subestimemos a diferença entre nossa intenção consciente e o efeito social de uma fala (em especial em lugar de autoridade, seja em palestra, entrevista ou aula de escrita criativa).
Aliás, pensando em mercado, há inúmeros casos de sucesso que não partem do que é pessoal ou “próximo”, mas do que é enlatado, calculado e, agora, programado. Se falar de si fosse o fator decisivo, não teríamos projetos, livros, filmes feitos com o específico propósito de ganhar dinheiro e que funcionam. Algumas dessas tentativas falham, mas não porque lhes falte paixão, considerando que seus gêmeos insossos logram sucesso. Além disso, se falar do que se ama levasse a muitos leitores, absolutamente todos os livros de literatura especulativa seriam best-sellers. Não haveria dinheiro no mundo para agraciar esses autores, talvez a maior concentração de gente apaixonada pelo próprio gênero (no que me incluo). Quantos desses livros, porém, “encontram seu público”?
A literatura brasileira é uma pletora de artistas impressionantes há anos; mesmo assim o consumo que vejo por aí é dos romances norte-americanos, em especial de uns dez autores que não se renovam ou de livros que viraram série da Netflix. As enorme maioria das pessoas que vejo lendo literatura brasileira contemporânea são mais gente do mesmo meio e quem transforma sua leitura em conteúdo, mas ninguém defenderia que norte-americanos “pintam suas aldeais” com maior verossimilhança ou sabedoria que os brasileiros.
Pelo jeito estou ficando velho, mas queria reforçar que, mesmo que se traduza cada vírgula do que fazemos (revisão, crítica, exercícios de escrita) em dinheiro ou numa competição por lucro, a literatura, para mim, passa ao largo de tudo isso. A gente a transforma em dinheiro, porque é o que dá, porque a realidade no momento é essa, porque a gente desaprende cada vez mais a pensar em qualquer coisa sem uma cifra do lado, a tal ponto que a cifra parece ser da natureza mesma da coisa. Tolstói, assim, vira mais um puxadinho desse capitalismo psicológico, numa forma falsamente humilde de dizerem o que as pessoas deveriam escrever. É um “Não sei o que deves fazer para criar, só sei que deves falar do que te interessa, do que conheces.” Ou seja, “sei do que deves falar, agora me paga por essa dica e faz o que te disse, para que te paguem pelo teu livro”.
Tenho certeza de que ninguém escreve só por dinheiro (muitos se convencem que é melhor não escrever por dinheiro nenhum). Nesse sentido, todo mundo escreve porque quer, que é o melhor motivo para se fazer qualquer coisa, creio eu, mas a promessa de dinheiro permanece, disfarçada, subreptícia, no verso de frases bonitas como a do Tolstói.
Um último porém no que ele disse: sei de autores que ganham muito dinheiro fugindo da própria aldeia, falando de qualquer coisa que não o que conhecem. Não querem tratar de sua geografia, de sua psicologia, de sua família… Há também quem corra atrás da moda e consiga pegá-la a tempo. Seus livros podem ser menos interessantes para nós, mas quem disse que eles devem ser “para nós”?
Se nada é universal, parte da literatura nos é estranha.
Devem existir muitas obras geniais por aí que não nos tocam, que nem entendemos por que as pessoas gostam. É bom que alguém as escreva e que seu público as leia. Nada temos a ver com isso. Se alguém quer falar realmente da própria aldeia, concordo que a gente deva incentivar a pessoa, mas sem o implícito de que trará sucesso ou dinheiro, de que foi o que G.R.R. Martin ou Alan Moore fizeram, porque, sim, estamos prometendo à pessoa um caminho de tijolos dourados, caminho que não podemos saber onde está e que, talvez, nunca leve ao norte monetizado.
Ora, mas nós não precisamos de dinheiro? Precisamos. Se ganharmos vendendo livro, viva! Eu gostaria de ganhar mais com os meus para dar menos aulas. Só acho que a premissa da frase é problemática e a replicação dela no capitalismo a tenha corrompido.
Não falo em “profissionalização” porque é uma palavra que eu aplicaria só se parte desse processo se mantivesse dentro das editoras e tanto isso quanto o que nunca coube a editoras implicassem carteira de trabalho assinada, reserva de mercado etc. Chamar o meio literário de “profissionalizado” seria como dizer que o Uber profissionalizou a carona. Por mais que a gente se esforce, trabalhe com ética, dedique mais do que nos é pago, ainda estamos numa situação precária bem representativa do capitalismo atual e não do ideal buscado nesse esforço todo.
Isso sempre me pareceu um engodo (não para o autor, mas para o que o autor vê reproduzido na prática, no mercado, nas editoras). Como nordestino, tenho que lidar com o fato de que "cantar minha aldeia" tem que ser "retratar o sertão estereotipado que pessoas de outra região gostam de ler/ver". Parabéns pelo texto.